sexta-feira, 4 de maio de 2007

Moby Dick (ou Como acabar com Melville em dois capítulos) – parte 1

Chame-me de Marabá. Há alguns anos – não sei quantos exatamente -, aconteceu que fiquei sem dinheiro ou, pelo menos, quase sem dinheiro. Como era então de meu hábito, resolvi embarcar de novo para percorrer mais uma vez o mundo do futebol e da aventura. Era assim que me livrava dos pensamentos sombrios e de outros pequenos problemas. Sempre que me surpreendia com rugas na testa – ou, sem ter nada o que fazer, contemplando os caixões de defuntos nas agências funerárias –, compreendia que era o momento de fugir para os gramados.

O futebol sempre me atraiu. De resto, acredito que ele atua como um imã poderoso sobre muita gente. Quando, aos domingos, costumava passear pelas ruas de Brejo Grande do Araguaia, se me distraísse e acompanhasse a multidão, terminava fatalmente no campo de várzea situado na parte baixa da cidade, onde as traves serviam de paisagem ou brinquedo aos que não tinham nada para fazer. Amo os estádios, não como simples espectador, mas como protagonista. Gosto do trabalho saudável e do ar (quase sempre) puro. Servi durante muito tempo em várias equipes. Fui, sucessivamente, primeiro volante, segundo volante e até zagueiro. Saltei pelas traves e andei pelo meio-campo como um gafanhoto; lavei e esfreguei a alma da torcida. Fiz de tudo o que se pode fazer num time e, por isso – e para variar –, escolhi a caça à baleia. Por quê? Por muitas razões.

A principal é a própria baleia, monstro que sempre me fascinou. Sonhava com intermináveis desfiles de baleias – e, não sei por que, havia nesses sonhos um grande fantasma branco, como se fosse uma alta colina de neve em pleno mar. Tinha que partir – e parti.

Meti na minha velha mochila alguns uniformes de pano grosso e pus-me a caminho do Grande ABC. Lá, arrumei uma vaga no S. Caetano – um time que teve vários momentos de glória, mas que acabara de cair para a Segunda Divisão e encontrava-se em sérias dificuldades. Era o que podíamos chamar de uma equipe nobre, mas era também um dos times mais melancólicos e estranhos do mundo.

O S. Caetano era comandado com mão-de-ferro pelo capitão Dorival, um homem amargurado e maltratado pelo tempo e pelas circunstâncias. Uma grande cicatriz esbranquiçada saía de seus cabelos já grisalhos: atravessava um lado do rosto e do pescoço e sumia sob a roupa. Além disso, o capitão não tinha uma perna – apoiava-se sobre uma haste feita de osso de cachalote. Soubemos, depois, que ambos os ferimentos haviam sido impostos ao homem pela pior fera da Série A: Moby Dick, a grande e terrível baleia branca que esmagava seus adversários.

Partimos então do Grande ABC para nossa viagem de cinco meses através do Estado. Singramos os estádios acumulando vitórias e pontos em nossos porões. Mas éramos vítimas da obsessão de nosso comandante: nada, nada importava a não ser sua maldita baleia branca, a qual ele não passava uma manhã sem desejar-lhe a morte. Mas sua obsessão por fim foi saciada: certo dia, inesperadamente, ali estava ela: Moby Dick, a besta mais feroz e perigosa do mundo inteiro.

- Ali, ali, ali... Uma massa branca e enorme como uma montanha de neve! É Moby Dick!

O oponente era tranqüilo e belo. Á força de fixar nele os seus olhos ansiosos, os homens acabaram perdendo o terror que até então os dominara e começaram a sentir uma espécie de feitiço. Não era de estranhar que, ano após ano, tantos homens se tivessem deixado enganar por aquela serenidade e ousado enfrentar a baleia branca, apenas para descobrir – às vezes muito tarde – que tal quietude era apenas o prenúncio de uma tempestade mortal.

Moby Dick avançava sempre, dissimulando o que nela era monstruoso: seu contra-ataque mortal, a defesa sólida, a tática infalível. De súbito, toda aquela massa emergiu da defesa para o ataque e, depois de uma rápida troca de passes e de um chute impossível, mandou a bola para fora.

Como um único homem, fascinados pela força de formidável adversário e sua implacável determinação, corremos para o ataque e um minuto depois nossas chuteiras sulcavam o gramado como se fossem impulsionadas por loucos furiosos. Logo que nos aproximamos, Moby Dick deu meia-volta e investiu contra nós. Aproveitando sua impetuosidade, cravamos dois arpões em seu dorso.

Mas, antes que a tática de Dorival surtisse o efeito desejado e o monstro fosse abatido, Moby Dick avançou com velocidade cada vez maior e, debatendo seu enorme corpo, conseguiu escapar rumo às profundezas do vestiário. Apesar disso, todos nós sentimos que o fim da baleia branca está próximo, muito próximo.

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Esta é uma adaptação livre, modesta e completamente irresponsável do clássico de Herman Melville. Sexta que vem veremos como terminará essa história - se ela seguirá o original ou se haverá alguma surpresa.

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