quinta-feira, 12 de abril de 2007

Lembranças em preto e branco

Os voluntariosos serão louvados! (Ezequiel, I: 9-10)
Bem-vindos a este campinho.

Quando eu era criança, campinho era a forma como chamávamos qualquer local que servisse para uns moleques baterem uma bola e isso nos preenchia com aquele prazer místico próprio da infância.

Como neste blog temos o mister de falar de futebol como moleques, sem apitos, bandeiras (se for a Ana Paula Oliveira podemos pensar) ou 4-4-2, resgato hoje essa denominação para este espaço em que pretendemos mesmo nos divertir como naqueles dias distantes em que fazíamos golaços em gol-caixote. Lembranças em preto e branco, essas cores tão caras a mim.

Gol-caixote era obrigatório nos campinhos, aquelas duas pedras ou dois pés de tênis distantes um metro um do outro que serviam como meta e dispensavam goleiro. Hoje, muitos meninos têm de pagar para jogar em quadras de “society”, que levam nomes como High Soccer. Mas devem transcender do mesmo jeito.

Campinhos podiam ser o terreno vazio do vizinho, podiam ser o quintal da minha casa, que tinha um arbusto magro no meio, o qual destruímos com nosso jogo de corpo, ou podiam ser como o Vermelhão, de Londrina, que tinha as dimensões de um campo oficial e possuía traves de ferro, apesar do chão duro de poeira rubra que lhe dava nome e que nos ralava inteiros. Tudo podia, basta dizer que classificávamos no diminutivo (campinho) aquela planície batizada no aumentativo (Vermelhão).

Esse Vermelhão encerrava toda a liberdade a que moleques boleiros poderiam se permitir, com tudo o que as liberdades trazem também de sacrifício. Espalhávamos-nos desordenados e distantes uns dos outros (nunca eram 11 contra 11, no máximo seis contra seis), quase sem compromisso com o time, o que nos permitia arrancadas com a bola nos pés por longos metros levando um oponente ou outro e não raro entrávamos com bola e tudo no gol, vencendo um goleiro de 12 anos que nada podia fazer para defender o latifúndio de ar de 7,30m por 2,40m.

Por outro lado, nossas roupas perdiam-se indelevelmente após cada partida, transformadas em andrajos de tom avermelhado da poeira; nossos tênis, idem; sem falar nos muitos incidentes que um campinho de verdade sempre reserva a seus artistas.

O Paulão, por exemplo, um loiro que aos 14 anos já se elevava a 1,80m de altura, certa vez teve cravado na sola do pé (jogava descalço) um enorme caco de vidro que alcançou até o osso. Ficou para sempre com os dedos do pé virados para cima e, com o tempo, passou a andar como o Patolino do desenho, já que o pé sadio estranhamente imitou a deformidade do pé doente. Paulão era exímio goleiro de futsal (só defendia com os pés) e assim seguiu mesmo depois do revés.

Essa bagunça que mantém viva a mágica do futebol rondará com mais freqüência esse lado do campinho, pairando acima dos esquemas táticos e escondendo a falta de conhecimento técnico do seu ocupante.

Caiçara e Palestrino, acho, a assoprarão, esquadrinhado com mais afinco os movimentos de cada ator de uma peleja em nome de um diagnóstico. Mas, nisso, já flertarão com o incerto: toda a técnica e estratégia desenvolvida no futebol servem apenas para minimizar a fúria do imponderável que a física escancara no futebol. Daí sai a beleza que enxergo num Robinho, no velho camisa 8 Ezequiel e nos jogos vira 5 acaba 10 dos campinhos da infância.

Substituição no Corinthians

Sai Dualib, entra Lulinha.
Quem dera. Em toda a natureza e em todos os tempos é assim: o velho se vai para a aurora do novo. Menos no Corinthians. E devemos ver o novo ir embora e o velho ficar, autoritariamente definhando.

8 comentários:

Caiçara disse...

Profeta (ou seria poeta?) Ezequiel,

curvo-me em reverência à beleza lírica do seu comentário, uma brisa de ar fresco para um esporte-business que se tornou tão sisudo.

Que a liberdade de regras, convenções, esquemas táticos, resultados, interesses comerciais e patrocínios dos campinhos nunca seja esquecida, pois no lúdico, como o Profeta (Poeta?) colocou com maestria, está a quintessência do futebol.

Continue sempre nos brindando com essas pérolas de magia e irreverência que estão do melhor lado do campinho.

Não fosse por mais nada, esse blog já valeu a pena só por esse texto.

Preto no branco: é extraordinário.

Don disse...

Ah se todas as minhas manhãs começassem assim...

Saudade do campinho, das peladas, pés descalços e alegria de criança.

Vou a caminho do interior, tentar resgatar um pouco dessa infância.

Anônimo disse...

3 dentro 3 fora, linha, rebatida, c* de boi, driblinha... os campinhos proporcionavam alegria até mesmo para quem quisesse jogar sozinho. Imitar o gol do Romário, do Viola... no corredor da minha casa eu dei elástico no Tonhão. Meti uma caixa no ângulo da máquina de lavar do meio da rua no Veloso. Minha mãe, a juíza mais severa que já vi, me expulsou diversas vezes quando lesionava suas queridas plantinhas.
Vou ter um quintal grande, pois os campinhos de hoje em dia já não existem mais... as peladas da rua foram trocadas pelo MSN e Winning Eleven. Vou poder educar futebolísticamente desde cedo meus descendentes. E meu quintal não terá plantas.

Rodrigol disse...

Ezequiel, não é à toa que você está imortalizado no teto da Capela Sistina.

Anônimo disse...

"Existem dois tipos de pessoas: as ordinárias e as extraordinárias". Fiodor Dostoievski (Crime e Castigo)

...

Extraordinário.

A beleza do texto reflete a beleza do autor.

Salve!

Anônimo disse...

Que belo texto, que lembra o tempo em que as crianças podiam inventar, alterar e desrespeitar as regras. Quando havia espaço para criatividade e liberdade.

luzia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

necessario verificar:)